A DAMA E O PASSARINHO

“Todos estes que aí estão /Atravancando o meu caminho, /Eles passarão. Eu passarinho!”

Publicada em 01/11/2012 às 08:52:00

O crepúsculo já se apresentava à cidade, quando errantes e canoros (ou seriam ruidosos?!) pássaros revoavam sobre o poste que fica na esquina da Joaquim Nabuco com a Sete de Setembro. Um perigo aos pedestres!

Permito-me, aqui, um parêntesis: esse cruzamento, comumente, é palco de cenas inusitadas e, algumas vezes, hilariantes. Os atores são sempre os mesmos: anônimos que teimam em subir e descer a avenida, carregando, muitas vezes, apenas sonhos encardidos de um dia a mais de desilusão.

Jamais dispenso um flerte com essas ruas. Minha janela só não é mais invasiva que a de James Stewart, de “Janela Indiscreta”.

Se o distinto leitor transita por esse cruzamento no final de tarde, sabe bem a que perigo me refiro... A presença de centenas de passarinhos, que dançam à luz da última luminosidade do dia, não deixa de ser uma ameaça aos transeuntes. Alguns chegam a sentir na pele o que chamo de vingança das aves. De fato, o desmatamento desumano lhes surrupiou o habitat. Atualmente, nem passarinho tem direito a dormir sossegado. E eles revidam como podem!

Certo dia, uma senhora caminhava arfante, trazendo consigo uma vida inteira em suas sacolas. Tinha tez branca, que fazia lembrar antigos bibelôs de porcelana inglesa. Além disso, ostentava um clássico penteado, que bem lembrava Grace Kelly, em “Amar é sofrer”. A tinta do cabelo - já minguante - não escondia, no entanto, os anos enluarados da Senhora que, naquele instante, esperava algum generoso motorista dar-lhe passagem na avenida.

Mais apressada que os magnânimos condutores modernos, uma das ruidosas aves não vacilou e vitimou a dama, com uma descarga do mais fétido excremento. Em susto patético, a senhora largou as sacolas e, num desequilíbrio inevitável, caiu perto do meio-fio, pouco à frente do poste de energia.

Imediatamente, levantou-se e se recompôs. Não escondia sua indignação. Ajeitou a mecha teimosa que deixara o rigor do clássico penteado, ao mesmo tempo em que olhava o derredor, a fim de verificar quanto dano o episódio trouxe à sua imagem...

Não escondo, distinto leitor, que, num determinado momento, dois sentimentos surgiram no meu espírito: um de solidariedade à senhora, pelo inegável constrangimento que ela acabara de protagonizar; outro, de comemoração pela eficaz vingança dos passarinhos que, por culpa do homem, viram-se obrigados a migrar para o asfalto.

Já com as sacolas em mãos, a distinta senhora, sem delongas, enveredou-se pelas Nações Unidas, desaparecendo logo depois, deixando, apenas, um vago frescor de antiga água-de-colônia incensando o ar da capital, misturado ao desagradável aroma do revide infligido pelos pássaros vingativos, como que a justificar os versos do gaúcho Mário Quintana:

“Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!”

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Theodorico Gomes Portela Neto é Procurador da Fazenda Nacional e Professor de Direito Tributário na Graduação e na Pós-Graduação.