PECADOS NA NOITE

O que se pode fazer, quando se está condenado à insônia eterna? Bisbilhotar a noite e os hábitos alheios. Afinal, que momento é mais convidativo ao pecado?

Publicada em 14/12/2012 às 08:58:00

A sentença foi implacável com o cronista: passar a noite em claro! Não houve sequer direito a recurso! Com o trânsito em julgado da decisão, não tive alternativa. Lembrei o jargão dos bêbados: “a noite é uma criança”...

O que se pode fazer, quando se está condenado à insônia eterna? Bisbilhotar a noite e os hábitos alheios. Afinal, que momento é mais convidativo ao pecado?

Da varanda do apartamento, vigio com grande desvelo o armazém da AmBev, em razão da função etílico-social que esta empresa exerce em terras Caripunas. Ao longe, vejo uma árvore de natal pestanejando, como que a rogar atenção.

Avisto um casal caminhando de mãos dadas pela Guanabara. Mas essa hora?! O andar faceiro do rapaz denuncia iminentes atos pecaminosos. Apago a luz do apartamento – para não ser visto – e apuro o olhar nos dois. Para meu desalento, eles enveredam pela Paulo Leal e me deixam a ver navios, digo, o caminhão do lixo.

Sim, eles trabalham de madrugada! Enquanto vivo chateado porque a Presidenta Dilma não quer dar aumento e os aposentados vivem se queixando da demora no pagamento dos precatórios (conversas de aposentado são sempre as mesmas: reumatismo, lançamento de estimulante sexual mais eficaz e o precatório que nunca chega!), os lixeiros se esforçam para tornar a cidade mais limpa.

O casal cruza novamente a Guanabara. Presto atenção neles. Estão à procura de uma alcova segura...

Olho para o firmamento. Pelos meus cálculos, a constelação do Órion se encontra no lugar indicado pelas cartas siderais. Se Órion passeia pela abóboda celeste, a zodiacal Escorpião já deve ter mergulhado no oeste. Deixe-me verificar se houve alteração na ordem astronômica. Tudo na santa paz da lua, que já inicia sua descida, após – triunfantemente - esvair-se em luar a noite toda. Faço um afago em Sirius da constelação do Cão Maior, enquanto a via láctea de Bilac cintila.

O casal, agora, para em frente à OAB. O rapaz me parece afobado... Olham para o estacionamento do prédio.
Acesso o “tudorondonia” e vejo que o Rubinho ainda não atualizou o sítio. Já são quase 3h da madrugada e me encontro sintonizado com notícias de 20h de ontem! Penso em ligar para acordar o Rubinho. Há leitores ávidos por informação. Enquanto isso, ele dorme...

A essa altura, o leitor deve estar se perguntando: “o que eu tenho haver com essa insônia e com esse casal? Danem-se o cronista, o casal e a noite. Era só o que me faltava!”.

Decerto, o leitor tem razão. Aliás, o casal luxurioso tem razão, os lixeiros têm razão, os aposentados têm razão, o Rubinho tem razão, a árvore que suplica atenção tem razão.

Chego à terrível conclusão de que tão somente a insônia é que padece de razoabilidade nessas quadras do tempo e da vida.

Preciso encerrar a crônica. Ficou impróprio descrever os afagos do casal carente. Parodiando Castro Alves, tremei, pais de família, pois o rapaz libidinoso está nas ruas...
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Theodorico Gomes Portela Neto é Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Tributário e Músico.