Trabalhadores anônimos movem diariamente os hospitais de Base, Cosme e Damião, João Paulo II e IML em Porto Velho

Anônimos para o público, lá dentro eles são conhecidíssimos. Uns mobiliaram o Hospital de Base Dr Ary Pinheiro, outros são servidores-padrões, dignos de homenagem pela assiduidade, capacidade e persistência.

Publicada em 27 de October de 2016 às 13:43:00

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José Alves e Ari contam causos que antecederam a inauguração do Hospital de Base

Anônimos para o público, lá dentro eles são conhecidíssimos. Uns mobiliaram o Hospital de Base Dr Ary Pinheiro, outros são servidores-padrões, dignos de homenagem pela assiduidade, capacidade e persistência. Eles madrugam. Alguns se levantam às 4h30, pegam ônibus em bairros periféricos ou em Candeias do Jamari para chegar cedo ao HB, no bairro Industrial, em Porto Velho.

Os turnos começam às 7h e se encerram às 19h, com intervalos para o almoço e lanche da tarde. Turnos de motoristas de ambulâncias são maiores: 12h x 24h. Da copeira ao transportador do doente com alta, o dia deles é longo. Antes dos serviços funerários municipais e particulares, eles também transportavam defuntos a distâncias de 200 a 800 quilômetros.

Um antigo marceneiro relata que o exigente, austero e ao mesmo tempo brincalhão ex-governador Jorge Teixeira de Oliveira, o Teixeirão, viu-se obrigado a caminhar a pé, sob as ordens de um peão de obras que o impedira de circular dentro do HB.

Nas oficinas de costura e na lavanderia industrial um destacamento de mulheres manuseia diariamente batas, calças, camisas, capotes, lençóis, fronhas, jalecos, macacões e outras peças usadas no HB, no Instituto Médico-Legal (IML), nos hospitais Cosme e Damião e Pronto-Socorro João Paulo II.

Lavadeiras cuidam da assepsia de toda a roupa e demais tecidos usados por enfermeiros, auxiliares, chefes de setor e pacientes. Todas moram longe e para chegar ao trabalho precisam de ônibus.

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Ieda de Souza já fez até 60 eletrocardiogramas por dia

O DIA TODO  EM PÉ

O piso é antigo, a sala azulejada é apertada. Numa cadeira, um servidor identifica cada paciente do Sistema Único de Saúde (SUS).

“Já vou tirar pra ti, meu amor” – avisa Ieda Queiroz de Souza, 62, manuseando peras e braçadeiras no paciente, na sala do eletrocardiograma.

Amazonense do distrito de Santa Catarina (Humaitá), ela foi criada no bairro do Triângulo, em Porto Velho, e trabalha desde 1980 nesse núcleo.

Trabalha em pé o tempo todo. “Sabe, antes eu fazia 60 exames por dia, ia pra casa,botava os pés no sal e no vinagre, de tanto cansaço. Hoje dou conta de uns 30, em média”, relata, completando: “Tem muita gente aí em situação igual à minha. Eu tenho certeza que a gente não vai mais para lugar nenhum, e a aposentadoria vai sair por aqui mesmo”, ri a funcionária.

Três equipes, uma delas noturna, atendem no HB e a todas as unidades de saúde para exames diversos. Sem o quadro clínico, a equipe médica teria dificuldades para avaliar corretamente cada situação.

Às 9h, o corredor do HB estava lotado em direção à sala do Núcleo de Diagnósticos, onde há sete anos Elisângela Brasil, 42, três filhos e dois netos, encaminha pacientes para exames de broncoscopia, colonoscopia, eletrocardiograma, ecocardiograma transtorácico adulto e infantil, ecocardiograma transesofágico, endoscopia digestiva baixa, escleroterapia e ultrassonografia morfológica geral – os mais requisitados.

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Todos os exames passam pelas mãos de Elisângela Brasil

“DIAGNÓSTICO É TUDO”

“Onde é que dói? O que é que sente?” . Podem parecer simples essas perguntas, porém, as resposta nem sempre levam ao caminho mais eficiente para eliminar as dores.

Dessa maneira, se não for feito corretamente o exame, o diagnóstico – parte fundamental do processo de tratamento de qualquer doença – pode ser uma estrada tortuosa até se transformar no caminho que leva o paciente a uma vida mais saudável.

Elisângela Brasil começou no HB aos 20 anos, em 1994, e ali espera se aposentar. Segundo ela, a cada mês mais de mil pessoas fazem eletrocardiograma e 4,5 mil, ultrassom nesse núcleo que funciona 24 horas, de segunda a segunda-feira, com escala de sobreaviso. Biópsias também são numerosas.

“A escala de sobreaviso permite, por exemplo, que um paciente do JP II com alta hemorragia seja imediatamente transferido para o HB, obtendo vagas junto outros pacientes da regulação”, explicou.

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Sílvia Lima, costureira no HB

 

“CURATIVOS NA ROUPA”

Uma visita à oficina de costura revela mais histórias de amor ao trabalho. Oito costureiras trabalham em dias alternados na equipe chefiada por Zuleide Mascarenhas.

No início dos anos 1980, Sílvia Lima, 61 anos, sete filhos e 17 netos, perambulou pela Esplanada das Secretarias no bairro Pedrinhas.

Conta que chorou ao constatar no protocolo que a nomeação para o primeiro emprego na saúde fora postergada em benefício de outra pessoa. Não desistiu, e corrigido o erro, foi admitida no setor de recursos humanos como secretária do serviço social do Hospital João Paulo II, em 1987. “Quem mandou refazer tudo e me garantir o lugar foi o governador Confúcio Moura”, disse.

 

 

“Vocês estão vendo isso, aqui a gente faz curativo nas roupas”, brinca Sílvia mostrando uma camisa remendada.

 

Desde o período no JP II ela tinha vontade de costurar, e realizou o sonho ao ser convidada pelo diretor do HB, Nilson Paniágua, para integrar a oficina.

Moradora do bairro Areal da Floresta (zona Sul da capital), Sílvia lembra de uma visita de Teixeirão ao bairro, quando ela morava perto de um antigo matadouro. “Ele perguntou o que a gente precisava, mandou fazer a cerca do matadouro, construiu escola, posto policial, casas e o centro comunitário”.

“Eu sei que tem muitas pessoas que nem sabem que nós existimos”, comentou Anália Duran, 65 anos, 11 filhos, 20 netos, nascida em Guajará-Mirim.

Ela começou a trabalhar na costura em 1987. Mora na rua Fernando de Noronha, bairro Eletronorte, e ri ao lembrar que o público em geral desconhece a realidade hospitalar. “Ah! tu trabalha no HB, é enfermeira? E eu respondo: não, sou costureira”.

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A turma do transporte: Raimunda, Ovinésio, Brandão, José Carlos e João Raulino

SOLIDÁRIOS MOTORISTAS

A equipe tem 18 profissionais que se revezam em turnos de 12 x 24 horas, conforme o porto-velhense José Carlos Souza, 64, chefe da divisão de transporte.

Ele compõe, canta e toca teclado. “Lancei meu CD e faço shows para aumentar o dinheiro da feira”, brincou.

A equipe viajou muito em ambulâncias modelos Veraneio (Manduquinha) e Caravan, consideradas “carros de barão” três décadas atrás. Estrada de chão nunca foi problema para Ovinésio Alves da Silva, 65, o Gato, seis filhos e 13 netos, nascido em Mossoró (RN) e atualmente morador do bairro Tancredo Neves.  “Sou motorista, mas tive momentos de técnico e socorrista; a gente precisava fazer massagem no doente e ajudamos a salvar bebês nascidos de partos complicados”, relatou.

Ovinésio veio menino para Rondônia, onde o pai, Julio Alves da Silva, foi soldado da borracha. Conhece os 52 municípios do estado. Antes, trabalhou cinco anos de motorista na Empresa de Transportes Andorinha, fazendo linhas entre Cuiabá (MT), Porto Velho e Boa Vista (RR).

 

“Já levei defunto para o Cabixi, a 850 quilômetros da capital”, conta Francisco Brandão Ribeiro, 57, nascido em Guajará-Mirim, hoje morador da avenida Rio Madeira, em Porto Velho.

 

Antes de ingressar nas jornadas que totalizam 34 anos de HB, ele também foi motorista da Andorinha no trecho Porto Velho-Manaus, pela BR-319.

“Conheci Itacoatiara e outros lugares muito lindos, o Lago da Democracia, em Manicoré foi um deles”, citou entusiasmado.

Filho da falecida enfermeira Elaíde Ferreira Brandão e do motorista Lauro Sena Ribeiro, outro motorista do HB, Francisco rende graças ao casal: “Me apoiaram muito em toda a vida; meu pai morreu aos 54 anos em 7 de outubro de 1979, dia do meu aniversário”.

Francisco conta que por um período ele e outros sofreram muito da coluna, pelo esforço de colocar e retirar padiolas com doentes nas ambulâncias. Mais tarde vieram as macas mais confortáveis.

João Raulino, 58, disse que antes do HB foi taxista em Porto Velho. Lembra das corridas aos garimpos do rio Madeira e das histórias do trem da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Sentada ao lado, observando e ouvindo a conversa, a copeira Maria Raimunda, 69, viúva, três filhos, cinco netos, também compartilha causos e relatos da equipe.

Simples, essa moradora do bairro Caladinho diz que “só faz cafezinho e serviços gerais”. Na verdade, ela é uma das “coringas” do HB, pois anteriormente trabalhou até na segurança.

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Lavadeiras de roupas relatam histórias de décadas

LAVADEIRAS MADRUGADORAS

A amazonense de Manaus, Jacira da Silva Marques, 64, sete filhos, 11 netos, moradora do bairro Castanheira (zona Sul porto-velhense), entrou no HB em 1983. Antes, trabalhava na Empog, empresa de limpeza e asseio que prestava serviços ao governo do extinto território federal.

“Eu vim de lá com 28 anos de idade. Gosto muito do trabalho, das companheiras, da direção do hospital, e pretendo me aposentar aqui mesmo”, disse.

Outra amazonense, também nascida naquela capital, Maria Laíde Gomes, 60, tem um filho e dois netos, e também chegou jovem a Porto Velho, aos 24 anos. Sua folha de serviços é exemplar: antes desse emprego, trabalhava na empresa Estacon.

 

“Fui pedreira, carreguei muito tijolo na construção deste hospital. Depois arrumei a vaga. Lavamos roupas de todo lado, às vezes até do Cemetron”, relata.

 

Com 34 anos de casa, Maria Elza de Souza, 62, mãe de um casal de filhos, sai de ônibus do bairro da Balsa para se incorporar ao time das lavadeiras.

No turno corrido das 7h às 18h, às vezes elas movimentam até meia tonelada de roupa. Antigamente, o modelo era manual, atualmente a lavanderia industrial consome sete mil litros de água por hora.

“O senhor sabe, aqui nós atendemos a todos os hospitais e somos 17 em cada plantão”, contou Maria Elza.

Acriana, de Rio Branco, Maria Neusa de Farias, 68, veio para Porto Velho aos 19. É a recordista entre as mães: tem 11 filhos, apenas um falecido.

“Antes daqui, trabalhei no Hospital Santa Marcelina (no Km 17 da BR-364) e depois entrei na saúde do estado, onde estou há 30 anos”, informou a lavadeira moradora de Candeias do Jamari, a 24 quilômetros de Porto Velho.

“Pra chegar no horário, me levanto todo dia às 4h30”, disse.

Elenir Batista dos Santos, 54, quatro filhos e dois netos, também madruga no bairro Cohab Floresta “para não atrasar nem 15 minutos”. Antes da lavanderia, trabalhou dez anos em serviços gerais na Seduc, quando a sede ficava na Esplanada das Secretarias, no bairro Pedrinhas.  “Depois, fui para o João Paulo e só saí quando fecharam a lavanderia de lá (entre 2014 e 2015)”, relatou.

Segundo Elenir, a equipe conhece peça por peça, e sabe de qual hospital veio.

OFICINA GERAL

O cenário se repete. No período da manhã, integrantes da Divisão de Reparos (ou Manutenção) descarregam tubos de gás, medem e reparam peças de alumínio, cadeiras, ferro e outras. Consertam janelas, portas e portões.

Unem conhecimentos de carpintaria, marcenaria e mecânica. Usam alicates, chaves de fenda, martelos, maçanetas, solda elétrica, parafusos, perfuradoras, pregos e algo mais.

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José Alves da Silva, carpinteiro, marceneiro e mecânico

Logo cedo, estão em ação nos “fundos do HB”. Fazem serviços de carpintaria, marcenaria e mecânica.

Ari Rodrigues de Matos, 59, sete filhos e sete netos (seis mulheres e um homem), também nascido em Guajará-Mirim, lembra até a data de sua admissão: 1º de abril de 1981.

Tempos depois, foi transferido para o Banco de Sangue, onde lhe encarregaram de chefiar serviços gerais. “Fui até garoto-propaganda das doações”, ri.

Na sexta-feira (14) ele foi ajeitar as portas da Ortopedia. Entrou às 13h30 e saiu só às 19h30.

Acriano de Brasileia (fronteira brasileira com a Bolívia), José Alves da Silva, 69, tem um filho e dois netos. Atraído pelo surgimento do novo estado, mudou-se em 1982 para Rondônia, lá deixando a maior parte da família, incluindo-se quatro irmãos.

 

“Eu instalei os primeiros móveis do hospital e ajudei a colocar o equipamento de raio X”, conta orgulhoso Ari de Matos.

 

Bem humorado, José Alves lembra da ocasião em que Teixeirão visitou o Hospital Tropical e o flagrou jogando damas com os companheiros. “Ele me disse assim: não se preocupe, quem ganhar aí joga comigo; eu ganhei, mas fiquei nervoso e perdi rapidinho para o coronel”, conta.

Outro causo: “O Dr. Maués tocava as obras, e um colega nosso, o Ceará, impediu o governador de passar no meio, obrigando ele a dar a volta por fora do prédio. Teixeirão falou com o doutor, perguntou quem era a pessoa e disse que precisaria dele no palácio, porque sabia cumprir ordens iguais àquela que recebeu. O Ceará ganhou um emprego lá, mas não se adaptou porque teria que trabalhar ajeitado, bem vestido, de gravata, mas ele não quis, porque se vestia com simplicidade”.

“Trabalhei dez anos no Cemetron com transporte e manutenção. De lá, um engenheiro me trouxe aqui para o HB”, disse Alves.

 

Fonte
Texto: Montezuma Cruz
Fotos: Daiane Mendonça e Alex Leite