Hidrelétricas do Madeira e a nova geografia de Porto Velho

Ricardo Gilson da Costa Silva, Professor do Departamento de Geografia (UNIR) e Doutor em Geografia Humana (USP).

Publicada em 23 de April de 2015 às 12:42:00

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A partir de 2008 a cidade de Porto Velho foi “sacudida” pelo início da construção das hidrelétricas do Madeira. Essas grandes obras impuseram temporalidades aceleradas ao cotidiano urbano e rural, constituindo-se como evento dinamizador da geografia local. Atualmente os consórcios construtores das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau propagam números e positividades dessas obras, que vão desde o pagamento de royalties ao incentivo à piscicultura. Elaboram um discurso no qual se colocam como protagonistas chaves do desenvolvimento socioeconômico de Rondônia. Contudo, deve-se problematizar sobre o que eles não dizem em suas narrativas, propagandas e premiações. Cabe apontarmos alguns desses processos que atingem diretamente as comunidades ribeirinhas, as populações dos distritos e o espaço local.

Problematizamos essas questões pelas lentes da ciência geográfica, cujo objeto se destina a entender a sociedade através da produção do espaço – o espaço geográfico transformado pelo trabalho humano no âmbito das relações sociais. Essa materialidade – o espaço produzido, a cidade e o campo – revela a apropriação histórica da natureza, sendo esta cada vez mais matéria-prima do processo produtivo global. No caso das hidrelétricas do Madeira temos a metamorfose da primeira natureza - a natureza derivada dos processos geoecológicos – para a segunda natureza – metabolizada em mercadoria pela apropriação social. Em outras palavras, a energia potencial originada do movimento/intensidade/fluxo do rio represado é, através dos sistemas técnicos, transformada em energia elétrica, ou seja, uma mercadoria fundamental para o desenvolvimento econômico e social.

As hidrelétricas do Madeira evidenciam a mercantilização da natureza, a transformação do meio natural em meio técnico e, também, a destruição de territórios. Particularmente, refiro-me a uma das transformações estruturais do espaço geográfico local, que dialeticamente chama atenção pelo discurso de modernização e sua consequente penalização às populações tradicionais amazônicas. Trata-se do fenômeno das (des)territorializações das comunidades ribeirinhas do Madeira e das antigas vilas criadas em função da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré (EFMM), sobretudo, as comunidades localizadas a montante da cidade de Porto Velho. Em geografia, compreende-se por (des)territorializações o processo de rompimento dos vínculos, de desenraizamento forçoso do ser humano com o território, que normalmente são expulsos, ou - na linguagem técnica - sofrem “deslocamento compulsório”, em função da construção de grandes obras. É um processo arbitrário que obriga as comunidades atingidas por barragens a construírem novos significados com o lugar onde vão ser (re)territorializadas.

A intervenção no rio Madeira, a partir da construção de duas das maiores obras da América Latina, impôs cruciais transformações ao cotidiano dos portovelhenses, da cidade, das vilas e comunidades, especificamente, às populações ribeirinhas do alto rio Madeira e aos moradores dos distritos de Abunã, Mutum-Paraná e Jaci-Paraná. O custo da modernização do espaço cristaliza, dentre outras situações, a destruição dos antigos lugares que expressam a formação sócioespacial de Rondônia, guardando a memória da história regional. Essas comunidades foram destruídas em seu território, que neste caso é espaço de produção, de cultura, de memória e de identidade, pelo intenso processo de modernização do espaço decorrente das demandas regionais por energia elétrica. A grande cheia do rio Madeira registrada em 2014, um fenômeno natural, somada aos impactos territoriais agravados pelas duas hidrelétricas, um fenômeno social, complexifica ainda mais o espaço local e obriga o Estado e os consórcios, sob a vigilância e pressão da sociedade civil, a repensarem o uso do território no eixo da BR-364, na região de Porto Velho.

Em função da cheia do rio e do agravamento causados pelas hidrelétricas, a Área de Influência Direta (o espaço físico atingido pelo o reservatório), certamente deve ser expandida, ampliando os impactos ambientais e territoriais. Nesse cenário, os distritos e comunidades de Jacy-Paraná e de Abunã possivelmente terão o mesmo destino que se configurou com Mutum-Paraná, isto é, serão desterritorializados e reterritorializados. Ambos devem ser replanejados territorialmente, o que indica transformar ainda mais – para o bem e para o mal - o cotidiano dessas comunidades.

Em decorrência dos impactos territoriais, a rodovia BR-364 – eixo desses distritos – seguramente será “alteada” mais uma vez ou desviada para não ser atingida por futuras cheias. Significa custos adicionados ao planejamento do território com possíveis aberturas de novas áreas de ocupações e de frentes de desmatamento. Aplica-se o mesmo cenário à rodovia BR-425, que liga a BR-364 à Guajará-Mirim, passando por Nova Mamoré. As comunidades ribeirinhas desse último município sofrem os impactos de Jirau. No plano do ordenamento do território se coloca em questão o imperativo de se refazer, em parte, o EIA/RIMA, o que os juristas chamam de refazimento, pois, a ampliação da área de impactos territorial e ambiental são fatos irrefutáveis.

Temos, assim, uma geografia nova do alto rio Madeira, totalmente transformada em função da inserção territorial das hidrelétricas. Interessante esclarecer que essa grande sub-região de Rondônia não fora objeto do processo de colonização agrícola (período de 1970/1990), mantendo-se preservada dos processos de transformação territorial ancorada no metabolismo da natureza em mercadoria. A espacialidade dessa grande área era composta pela territorialidade marcante das comunidades amazônicas (ribeirinhos, extrativista, pescadores, vilas e povoados antigos). O que as singularizava era sua antiga relação com a natureza, em suas representações sociais que tinha com a floresta, com o rio e que compunha suas cosmografias. A mercantilização do rio resulta em sua “privatização”, de modo que as hidrelétricas do Madeira aniquilam a geografia dos ribeirinhos. Portanto, a psicosfera que os consórcios construtores das hidrelétricas do Madeira divulgam são contrastadas pelas geografias cristalizadas na destruição das paisagens, dos lugares e dos territórios que fazem parte de Porto Velho.

A cartografia social composta por essas comunidades saiu do mapa! Perguntamos: o que restou das comunidades ribeirinhas a montante de Porto Velho? E o que restará das vilas oriundas da construção da Madeira-Mamoré? São os ribeirinhos sem rio e peixes; são os extrativistas sem os recursos da floresta! São as comunidades sem lugares, são as vilas que sumiram do mapa! Uma cartografia da destruição dos lugares, da memória e dos territórios que não constam nas narrativas, propagandas e premiações do capital hidrelétrico.